Angola cosmopolita

Gosto desta diversidade de gente que se aventura por terras angolanas. Composta não apenas pelos que vivem no glamour das praias da ilha e dos fins de semana no Mussulo, nem pelos miseráveis chineses, mas também pelos que vivem nos musseques onde se ouve falar Francês, Inglês, Português e tantas línguas banto diferentes. É um fenómeno novo, um desafio de multiculturalidade.

Lembro-me bem da primeira vez que cá vim, em 2005, éramos meia duzia de estrangeiros. Quase tudo gente das ONGDs e afins. Uns quantos russos e cubanos dos tempos da guerra fria. As únicas excepções eram os angolanos de origem Portuguesa que nunca sairam daqui porque não conheciam outra pátria nem outra possibilidade de identidade. Muitos mandaram os filhos para Portugal, para serem criados por familiares e ficaram durante toda a guerra à espera de os poderem chamar e de tudo voltar a ser como antes.

Nada voltou a ser como antes, mas em 2005 já começavam a chegar os filhos desta gente brava. Chegavam também aqueles que tendo partido, nunca tinham ido embora. Começava-se a ver, aqui e ali, alguns orientais. Foram os primeiros a abrir pontos de acesso à internet. Mas para se ter uma ideia, em Agosto de 2005, quando tive de estender o meu visto, éramos 18 estrangeiros em toda a província do Huambo (agora devemos ser mais no prédio onde vivo).

Hoje somos milhões provavelmente. As ONGDs já foram quase todas embora. As empresas e os negócios crescem como cogumelos. Há hotéis de 5 estrelas, bares e esplanadas da moda que fariam furor em qualquer capital do mundo, restaurantes chics, com design na arquitectura e na comida. Sim, isto é sobretudo em Luanda mas o resto do país acompanha a tendência. A maioria dos estrangeiros, são agora empresários, quadros especializados de empresas, trabalhadores da construção civil, dos serviços, biscateiros. E são Portugueses, e Brasileiros e de outros outros países do mundo… atraídos para Angola como as traças para a luz.

Mas esta é apenas a camada mais visível do bolo, pelo menos para mim. A minha recente visita ao restaurante etíope permitiu-me espreitar outras camadas. Já me tinha apercebido em Cabinda e no Zaire que há um grande fluxo de imigrantes/refugiados vindos do Congo. Mas não tinha percebido a dimensão de nacionalidades africanas que coabitavam nos musseques e bairros populares, onde moram, afinal a maioria das pessoas.

Como é normal ora estamos numa zona bem da cidade, ora viramos uma esquina e estamos no bairro. Estavamos no Miramar e de repente, viramos para a rua do Centro Cultural Agostinho Neto e entramos no bairro operário (acho que se chama assim). Acabou o asfalto e começou a lama, as puxadas de electricidade cruzadas em todas as direcções, as casinhas pequenas, desbotadas e a precisar de obras, os portões que escondem pequenos bairros como as ilhas do Porto. Perguntamos pelo restaurante. Etiopes, não conhecemos!, disseram-nos.  Depois de algumas tentativas alguém nos respondeu em inglês e nos indicou o caminho. Tinhamos estado mesmo ao lado, há umas ruas atrás. Como era cedo, saimos do carros e fomos passear. Uma colega angolana queria comprar postiços para entrançar o cabelo e foi uma alegria para a vendedora termos regateado tudo em francês.

Até chegarmos ao restaurante devaneamos pelo bairro e deliciei-me a ouvir línguas diferentes, a ver vender coisas diferentes e a cheirar aromas diferentes. Os etíopes tinham dificuldade em falar Português. Estão a instalar-se. Já há mais 2 restaurantes etíopes em Luanda. Os angolanos vão experimentando timidamente mas a maioria dos clientes são estrangeiros que se aventuram pelo bairro. Mal conhecem a vizinhança. Têm a comunidade deles mais ou menos organizada para se apoiarem uns aos outros. Dos outros imigrantes do bairro, sabem pouco também. Vivem para trabalhar. Vão-se dando com alguns que falam inglês e vêm do leste de África, mas pouco.

Fiquei intrigada. Como é que num sítio onde as pessoas vivem umas em cima das outras, como é o caso destes bairros, e onde a vida se desenrola quase toda na rua e a privacidade é zero, coexiste a África inteira sem se conhecerem? Fiquei com uma vontade tramada de pegar numas pessoas que cá conheço e irmos filmar e conversar para os bairros mais cosmopolitas de Luanda.

Angolanices nº 3

Não costumo falar aqui muito do meu trabalho, mas a verdade é que ele permite-me contactar com algumas pérolas incontornáveis. Em muitos casos, confesso que não sei se ria, se chore.

Mas “entrando já no centro da preocupação” (esta é linda, vá!), e sem mais delongas verifico que o sentido prátido faz parte do quotidiano. E para tudo há uma solução. Sobre as crianças portadoras de deficiência ou dificuldades de aprendizagem, as respostas do sistema são variadas. Não há descriminação, até porque “quem tem corpo, tem doença”. E é muito simples: “Se vê mal, senta na frente”, “Se ouve mal, senta na frente”, “Se tem assimilação mais retardada estuda mais”

E claro, o grande problema nacional, que produz imensa tensão no sistema de ensino, é o facto de “Angola não ter taxa antinatalista”.

 

 

 

A culpa é do chinês

A China investe em África sem dó nem piedade. Economicamente é um fenómeno interessante. Socialmente cria fenómenos de racismo revestidos de um humor brutal e recheados de ignorância do outro.
Os angolanos ainda estão a recuperar do choque originado pela capacidade de adaptação dos chineses aos trópicos. É coisa nunca vista pois ao contrário de outros povos que são umas florzinhas e lamentam o calor, os bichos, a lentidão e a falta de infraestruturas, eles vivem como os locais. Em qualquer contentor fedorento, ao Sol, no meio do mato numa barraca improvisada ou na suite presidencial dos melhores hotéis, eles estão em todo o lado. Destacam-se pela fisionomia diferente. “Óooo doutora, mas então diga-me lá. O chinês é preto ou branco?” “É chinês.” Respondo eu a ver a conversa mal parada. “Mas então eles agora vão começar para aí a fazer filhos e não vão sair mulatos? Vai ficar complicado para os miúdos.”
Destacam-se também pela incompetência linguística. Já ouvi angolanos falar Chinês mas nunca ouvi um chinês falar Português.
Dão origem a grandes mitos urbanos e rurais, como o famoso “chegou o chinês, nunca mais se viram cães”. Comem coisas muito estranhas. “Olhe que chinês come tudo que voa e que rasteja. Só não come comboio nem avião”. Um pequeno exagero humorístico mas que retrata bem a estranheza das gentes.
E distingue-se dos demais, sobretudo, por ser a fonte de todos os problemas. Se há uma fila de trânsito, é o chinês que vai lá na frente no camião a complicar. Se nos atolamos no meio do rio, é porque o chinês estava lá atolado. Se ele não estivesse ali a estorvar nós claro que tinhamos passado. Se a estrada tem buracos é porque foi feita por chinês, mesmo as picadas que foram estradas no tempo colonial. Não tem lugar para estacionar? A culpa é do chinês que ocupa o espaço todo. O carro avariou? A culpa é do chinês, nem que seja um Ferrari :).
Infelizmente a maioria dos chineses que cá estão vivem pior que muitos angolanos. Diz-se (não faço ideia se é verdade) que muitos dos trabalhadores da construção civil são presidiários. Certo, é que a maioria vive em condições degradantes, na mais profunda pobreza, à parte, olhados de lado o que confunde a ordem social estabelecida baseada no preto e branco, no rico e pobre, no rural e urbano. Vão dar muito que falar ainda. E entre piadas e gargalhadas Angola vai construindo muros entre uns e outros… e com um jeitinho ainda dizem que a culpa disso também é do chinês.