Coisas que só me acontecem em Luanda

Uma pessoa vai à baixa comprar papel de embrulho para um presente. Depois de muito trilhar por entre buracos, poças de água, lama, caos rodoviário e multidões de gente, encontra uma loja de tudo. Sim, daquelas do tipo das dos chineses, mas pior que as dos chineses.
Entramos e quando a porta se fechou atrás de nós, suspiramos de alívio com o ar condicionado a refrescar o corpo e olhamos espantadas para a parafernália de brinquedos, têxteis lar, material escritório, roupa, perucas e extensões, artigos para festas e mais mil e uma coisas que se possam imaginar, tudo pendurado no teto ou acomodado em prateleiras sobrelotadas e espalhado pelo chão.
Sinto que se der um passo inicio uma reacção em cadeia que pode provocar um cataclismo destruidor. Não vemos ninguém. E é então que somos dominadas pelo cheiro intenso a marisco. Eu e a minha amiga olhamos perplexas uma para a outra. “Cheira a marisco!?” – perguntamos em simultâneo.
Ouvimos uma voz, longínqua a dizer “Pode entrar.” Avançamos às cegas por entre a mercadoria e damos de caras com um balcão, onde por entre calculadoras, caixa registadora e mais sei lá o quê se encontra uma bacia de plástico, enorme, cheia de camarão cozido e várias folhas de jornal com montanhas de cascas. Tranquilas e empenhadas, duas mulheres agarradas a dois enormes camarões, perguntam o que desejamos, sem os largar.
“Queremos papel de embrulho”
“Procura aí do teu lado e vê qual queres” diz uma delas a chuchar uma cabeca de camarão com a máxima concentração.
Conseguimos encontrar o expositor. Os papéis eram todos pirosos mas lá se escolheu o menos mau. Estavam as folhas todas emaranhas e não conseguíamos tirar o que queríamos sem ajuda. Uma das mulheres, compreensiva, larga a cabeca de camarão e vem em nosso auxílio sem sequer limpar as mãos. Foi tão eficiente a agarrar as folhas que eu nem tive tempo de dizer “cuidado, vai ficar a cheirar a camarão”. Ainda teve a delicadeza de limpar subtilmente as mãos à parte de trás da folha, que enrolou muito direitinha e nos entregou. Mal ficou com as mãos livres atacou outro bicho e nunca mais o largou enquanto fez a conta, o troco e se despediu de nós.
Chegadas à rua, mal sentimos o choque de calor, barulho e cheiro a podre da cidade, suspiramos de alívio. Parecia que tínhamos vivido uma versão angolana das Crónicas de Narnia, onde em vez de um armário, tinhamos a loja a servir de portal entre mundos.

Moçambique – Alerta amarelo!

A última semana foi passada em Muxungué e na região envolvente, uma das mais pobres e isoladas. No início do mês houve ataques armados, mortos, feridos e pânico generalizado. Ganharam vida, velhos e novos fantasmas da guerra. A viagem foi adiada até ao limite porque havia que cumprir normas de segurança e a região, já bem isolada, ficou quase interdita, com recolher obrigatório e estradas desaconselhadas.

A desinformação é muita mas da boca da população o que se houve é que tudo começou com um ataque das autoridades e descambou com um contra-ataque da Renamo. É comum a polícia impedir as reuniões, comícios e actividades em geral da Renamo. Há casos de dirigentes agredidos, militantes presos e espancados. Desta vez, como em outras, a polícia entra num edifício onde estavam reunidos militantes da Renamo, dispara indescriminadamente, espanca e prende uma série de pessoas. É de salientar que estamos em época de campanha eleitoral para eleições municipais a realizar em Junho e que a actividade partidária é mais do que normal.

Ora a seguir, consta que um grupo de militantes da Renamo, numa bela noite entra pela esquadra da polícia adentro e dispara a matar sobre quem lá estava. Diz o povo que perante esta confusão toda, não faltaram oportunistas a servir-se da confusão para causar ainda mais distúrbios e roubos e pânico. Foi um pandemónio! Morreram várias pessoas. A população fugiu da cidade, as escolas fecharam, os negócios fecharam e durante dias ficou toda a gente na expectativa.

A Renamo há muito que pede uma revisão da lei eleitoral para ter direitos iguais aos da Frelimo. (Direitos estes alterados pelo governo e contrários ao Acordo de Paz) O Presidente, pessoa pouco querida por gente de todos os quadrantes políticos incluindo o dele, parece que é do tipo arrogante, surdo e pouco competente. Ouve-se falar de Chissano com muita saudade.

A compôr o circo da desmocracia, o presidente histórico da Renamo, abalou há meses para o seu reduto de guerra na Gorongosa, a partir de onde faz exigências ao governo e ameaça pegar em armas de vez em quando. Neste momento, 15 dias após os atentados em Muxungué, a Renamo exige ser levada a sério nas suas reivindicações e quer respostas do governo ou não se candidatará a eleições. O governo, infantiliza o adversário e faz-se de mouco e de burro. O povo, entre a piada fácil (do género “o Chissano levou anos a tirar o Dlakama do meio do mato e o Guebuza manda-o para lá outra vez) e a desvalorização dos acontecimentos, não deixa de sentir um nervoso miudinho de quem sabe que as coisas podem dar para o torto.

Felizmente, um conflito aqui na região, não deve ser do interesse de ninguém nesta altura. Mas temos uma democracia da treta, gente prepotente com armas e uma população ignorante e não me parece que dois velhos casmurros e com egos enormes consigam resolver a desmocracia a bem.

Parece Portugal nos anos 80

Disseram-me isto sobre Angola, hoje, e ficou a martelar-me no pensamento. Os maravilhosos anos 80: tempos de vacas obesas, oportunismos cegos, o sonho de ser funcionário público e não fazer nada para o resto da vida, os cursos e as universidades a nascerem como cogumelos. Eh pá, de facto a analogia tem muito que se lhe diga….

E a moda!? As cores todas do arco-iris numa única toilete, de preferência fluorescentes e com motivos florais, os vestidos de malha coleantes a moldar o corpo, bem curtinhos para não se esconder nada e os acessórios reluzentes e grandes para se verem ao longe.

Até na TV… as primeiras telenovelas de produção nacional que provocavam choradeiras descomunais à hora do jantar e um ódio de morte aos personagens maus da fita. Era tempo também dos primeiros programas de música, com muitos videoclips a ditar modas e os apresentadores com guiões forçados e ares artificiais.

Na música é que não há analogias possíveis… prontos, alguma coisa havia de escapar.

Mas o mais engraçado, assim à distância, é que desde a crença inocente de que se ia ter um trabalho bom para o resto da vida, ao colorido da roupa e ao experimentalismo televisivo o quotidiano tresandava a esperança. Íamos viver melhor que os nossos pais, íamos ter mais oportunidades, íamos ser em tudo diferentes… a esperança era tal que alguns de nós até sonhavam ir para África acabar com a miséria dos outros como se tivessemos em nós o know how, a varinha mágica para fazer acontecer o mundo perfeito :).

E agora aqui, vemos a história repetir-se em muitos aspectos e do alto da nossa sabedoria, de experiência feita, saboreamos o sentimento de esperança contagioso e brindamos com um gin tónico a um desfecho diferente.