O MUNDIAL VISTO A PARTIR DO QUÉNIA

Nesta minha bancada de onde assisto ao Mundial “africano”, pouco vejo de festa e entretenimento e assisto a um jogo económico-simbólico perverso manipulado por grandes empresas e interesses políticos.

Todos sabemos que as quantias de dinheiro e os interesses de vária ordem envolvidos num campeonato deste género são imensos mas acho que nunca foram tão perversos como agora. A partir desta bancada eu vejo um continente inteiro em bicos de pés a acenar ao mundo, e vejo uma poderosíssima máquina simbólica a usar e a reforçar um sentimento de inferioridade colectivo.

Uma das consequências mais preocupantes deste mundial é a generalização, o reforço da ignorância internacional em relação ao continente. O Mundial é da África do Sul, e dificilmente haveria condições para o realizar em outros países africanos mas vende bem falar de África, essa massa continental onde raramente se distinguem geografias, culturas e histórias e à qual se associa apenas pobreza, guerras, ignorância e subdesenvolvimento, numa homogeneização absurda do Mediterrâneo ao Cabo. É muito frustrante trabalhar para mudar esta visão redutora de um continente inteiro e de repente ver esta brutal máquina simbólica a vender esta imagem aos próprios africanos, que veem este campeonato como um jogo de vida ou morte entre África e o mundo, a preto e branco. A manipulação é tão grande, a mensagem é tão forte, que num país onde ninguém é queniano, onde o sentimento de pertença a uma nação não existe de todo, onde cada um se auto-limita nas suas fronteiras étnicas e considera outros concidadãos inimigos, de um dia para o outro, tornaram-se todos “africanos” contra o mundo e cada jogo é uma batalha onde se joga a honra de um continente inteiro. Num instante a vuvuzela se tornou num instrumento tradicional e num símbolo “africano” . E ai de quem criticar aquele zumbido absurdo dos estádios, porque está contra a África inteira e a desprezar a África inteira. Curiosamente nunca se viram vuvuzelas pelo Quénia antes. E ai de quem apoiar qualquer equipa que jogue com uma equipa africana, ou de quem critique o mau desempenho de uma equipa africana pois é uma atitude altamente racista e de desprezo para com África. E claro que quando as equipas africanas perdem é o resultado de uma enorme conspiração internacional contra África.

A ideia de um sentimento colectivo de valorização e pertença africana também me seduziu no início, uma pequena pedra a ajudar à construção da União Africana que tão importante seria para os vários países e cidadãos do continente, mas a realidade vista da bancada do Quénia rapidamente me desiludiu. Os vários atentados contra os direitos humanos na África do Sul foram ignorados. Ouve muitos africanos explorados na construção dos estádios, muitos africanos que ficaram sem casa ou sem os seus negócios de beira de estrada porque a polícia sul africana quis “limpar” o país e dar uma imagem destorcida aos turístas e houve muitos, mesmo muitos africanos que não conseguiram visto para assistir aos jogos. Um processo muito fácil para qualquer não africano, mas quase impossível para os africanos comuns no grande Mundial de África, pois o país anfitrião temia que os vizinhos usassem o campeonato para imigrar e depois aí residir ilegalmente. E nunca aqui ouvi ninguém, absolutamente ninguém, questionar nada disto, ou o facto de nem mesmo a maioria dos sul africanos beneficiar economicamente com o evento (quanto mais os outros!), ou o facto de se estar a gastar imenso dinheiro em estruturas para “inglês ver” num país (a África do Sul e não “África” como tanta gente confunde) onde há tantas necessidadedes mais básicas e importantes.

Aqui da bancada do Quénia este campeonato esteve perdido desde o início. Gostava de ter visto o mundial servir para levantar vozes africanas contra o neo-colonialismo  económico, para ver africanos defenderem o respeito pelos Direitos Humanos em África, para assistir ao despertar de um  genuíno sentimento de partilha com outros países africanos na luta por interesses comuns. Mas não, aqui assistiu-se a uma telenovela que promovia a FIFA, a MTN, a Coca Cola e outros através da manipulação simbólica do Mundial de Futebol. No Quénia, onde hoje todos são “africanos”, em Agosto, aquando do referendo da Constituição, nem sequer serão quenianos e poderemos assistir ao reacender da violência que se seguiu às últimas eleições. Espero que isso não aconteça. Espero estar completamente enganada. E espero que de outras bancadas, em outros países africanos, se tenha visto outro Mundial.

THE THEATRE EXPERIENCE

No passado fim de semana fui ao teatro. Não fui a um teatro qualquer, até porque não há muito por onde escolher, fui ao Teatro Nacional do Quénia, em Nairobi. A arte não é valorizada aqui. A música é importada dos EUA, ou de outros países africanos com uma cena artística mais dinâmica como a Nigéria ou a Tanzânia, o cinema é praticamente inexistente e resume-se a um ou dois projectos experimentais, a dança… só nos bares, a literatura reune uma pequena elite interessante mas é inexpressiva e os principais escritores estão exilados e o teatro, ao contrário do que acontece em outras Áfricas que eu conheço, é pobre e quase inexistente. Por isto tudo, o anúncio de um espectáculo em cena no Teatro Nacional, que prometia integrar música, arte circense e teatro deixou-me mortinha de curiosidade e lá fui eu mais a Mzunguinha, com uma expectativa relaxada, mas preparadas para um fim de tarde interessante.

Eu juro que eu quero ter coisas boas para dizer sobre o  Quénia para além da obvia beleza da natureza e da vida selvagem, mas é difícil. E qualquer possibilidade de o teatro entrar neste rol desapareceu mal chegamos à sala de espéctáculos.

A primeira sensação ao entrar no Teatro Nacional é de náusea com um cheiro intenso a urina, a segunda é de nojo ao ver o estado de degradação e sujidade: os cortinados a desfazerem-se e sem nunca terem sido lavados na vida, o veludo das cadeiras carcomido e manchado, o bar com um ar mais degradado do que o bar de qualquer colectividade de bairro portuguesa. Dentro da sala, com as saídas de incêndio fechadas a cadeado, o palco despido, desbotado e degradado e as cadeiras desalinhas e velhas sentiamo-nos nas entranhas de um matatu gigante, com a vantagem de não estar cheio de gente. A terceira sensação a invadir-nos e a revoltar-nos é a de perplexidade perante a própria performance que era tão má, mas tão má, que ao fim de meia hora levantamo-nos e saimos. E esta foi a parte mais triste. Que o estado não apoiasse a arte e investisse nas suas infra-estruturas eu entendia, mas tinha ainda a esperança de ver um espectáculo bom onde a qualidade dos artistas ofuscasse a indignidade do espaço. Não foi assim, tal como acontece em muitas outras coisas foi pobre, sem o mínimo profissionalismo, sem o mínimo esforço para ser bom, para se superar, sem paixão pela arte, sem envolvimento e sem qualidade.

E é nestas alturas que fico feliz por conhecer bem Angola e Moçambique e poder dizer que África não é toda assim. Que a pobreza não é desculpa para tudo, que o colonialismo já não serve de desculpa a quase nada e que em outras Áfricas, apesar de todas as dificuldades, há vida e arte e paixão a alimentar as gentes.

BOMBAS CONTRA A DEMOCRACIA

Ontem morreram cinco pessoas e quase cem ficaram feridas devido a um atentado bombista. Aconteceu durante uma manifestação no centro de Nairobi a propósito da nova Constituição. O Quénia está em processo de revisão constitucional e vai submete-la a referendo popular no próximo mês de Agosto. É um passo importante para o desenvolvimento do país e para garantir maior justiça social. As negociações entre os mais diversos parceiros sociais e a discussão popular, apesar de ofuscadas por demagogias populistas, têm decorrido com uma abertura democrática surpreendente. As várias versões e propostas publicadas nos jornais e discutidas publicamente e a tentativa de construir um contrato social difícil, que integre toda a diversidade social, tribal, cultural e religiosa do país tem sido uma constante.

Para mim, aliás, o grande problema da nova proposta constitucional é querer tanto agradar a todos, que se torna contraditória. No entanto, apesar de todo este esforço os fantasmas do costume fazem a sua aparição para assustar a Democracia. As tensões sociais e tribais que deram origem à violência pós-eleitoral em 2008, continuam a ser as mesmas. O Quénia não existe. Existem 41 tribos confinadas a um território que não querem partilhar e que cada uma quer dominar, em seu benefício. É uma sociedade segregada, onde ninguém se mistura, onde ninguém quer cooperar, onde a noção de cidadania nacional não existe e onde cada um espera pela sua “vez de comer”, ou seja, de chegar ao poder, partilhà-lo entre os seus e fazer o que agora acusam o Governo de fazer.

Sempre que pergunto, a quenianos, se acham que as próximas eleições em 2012 vão assistir a uma repetição de barbaridades, respondem-me que não. Todos me dizem que não, que é passado e até desvaloriza, como se tivesse sido um acidente… uma momentânea demência colectiva. É mentira! Estão a enganar-se a eles próprios e as bombas contra a democracia já estão a começar a ser lançadas.